quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Solidariedade de asas

Um passarinho desses bem pequenos entrou na minha varanda. A primeira vez que o vi achei que fosse um filhotinho de bem-te-vi. Fiquei encantado, só que notei que ele não cantava. Achei que fosse por causa da sua pouca idade. Poucos dias depois, quando meu tio Pradinho, um notório conhecedor de aves, esteve lá em casa, fiquei sabendo que o pequeno pássaro não é um bem-te-vi e sim um autêntico caga-sebo. Achei o nome engraçado e fui pesquisar sobre. Descobri que o nome científico é Todirostrum poliocephalum e que também é conhecido como Sebinho ou Teque-teque.
Hoje, um deles entrou e não conseguiu sair. Ficou apavorado, batendo asas e indo contra ao vidro que separa a varanda da liberdade. Do outro lado da janela, pousado em um dos galhos do ipê, estava outro caga-sebo. Este observava a árdua luta do amigo para sair do “cárcere”. Dava até para ver a expressão preocupada da pequena ave. Abri bem as janelas e fiquei esperando que o bichinho saísse. Não demorou muito para que ele encontrasse a liberdade. Os dois amigos voaram rápido dali, por entre os galhos do ipê. Provavelmente não voltarão mais. Talvez voltem, trazendo outros amigos para ajudarem na saída.
É, parece que em matéria de solidariedade, temos muito que aprender com os caga-sebos.



Daniel Rubens Prado.
A vida passa voando.
Imagem: Bird on a Ledge,
From Pompoii National Archaeological Museum.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

Alegre ou triste?




Numa das tantas reuniões com os parceiros de eutanásia, há algum tempo, eu e nosso grande amigo e guitarrista Eugênio tocávamos violão. Descompromissadamente ébrios. A tal ponto, que nos faltou idéia para a próxima música. Indecisos, Eugênio me indagou em voz levemente alta:
- Alegre ou triste?
Enquanto tentava pensar na resposta, Daniel, nosso irmão e mentor, do outro lado da casa, antecipou-se, num grito clamoroso: - Trisssssssste!
Diante dessa capacidade de nos deliciarmos com a beleza contida em certo tipo de tristeza, decidimos, a partir daí, refletir sobre quais seriam as músicas mais melancólicas já compostas por alguém.
Claro que tal julgamento é subjetivo. Depende da experiência de cada um com cada música. Não tivemos coragem de ordená-las, mas chegamos a um resultado. Uma coisa é certa: todas elas são maravilhosamente tristes. Tal como morrer nos braços da Jennifer Connelly.
São elas: Someone to Watch Over me, de George/Ira Gershwin (escute na voz da Ella Fitzgerald); Ária na quarta corda (Bach); Sonata ao Luar (Beethoven) e Canto Triste (Vinícius de Moraes/Edu Lobo).
No mais, uma feliz tristeza para todos nós.



Fred Tonucci,

Imagem: Lone Musician,

de Vincent Alcarese.

Poema sem direção


Ana Beatriz tem os olhos claros.
Há tanta esperança em seus movimentos.
Ana é sensível e de gestos calmos,
linda, mas cheia de argumentos.

Beatriz se apresenta!
Ana se perde, Ana de leve,
de súbito, se ausenta.

Ana? Beatriz?
Poeta noturno procura...
Ana Beatriz
Tão madura!
Olhar sincero
de menina muda.

Meu peito aperta,
meu mundo balança.
A lua se esquiva,
Beatriz dança.

Ana Beatriz encanta,
Ana esperta, Beatriz sapeca,
poeta, poeta...
Cuidado com os sonhos,
com tamanha ternura,
É melhor ficar alerta!


Texto: Daniel Rubens Prado.
Imagem: Salvador Dali.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Como se deve tratar uma mulher?

Para Mônica Barros Monteiro.

Essa pergunta chegou sorrateiramente aos meus ouvidos às 9h30 da manhã de uma quarta-feira de primavera. Bom, não sou nenhum Don Juan ou Casanova, mas posso facilmente mostrar o meu bom trato a quem se interessar.
Como Di Cavalcanti, Vinícius de Moraes ou mesmo Márcio Rubens Prado, meu maior mentor, fiz um pacto logo após nascer, que só viria a entender lá pelos meus três anos de idade, quando me encantei pela primeira vez por uma dona, ou melhor, uma doninha. Desde então, apaixonei-me inúmeras vezes e todas as mulheres que passam na minha vida, deixam sempre um pouco de delicadeza, ternura e cumplicidade.
A primeira coisa que uma mulher precisa é de uma overdose de carinho e atenção. A que diz não suportar mimos, ou está mentindo ou não quer especificamente os seus. Das duas, uma. É preciso saber ouvir, não só apenas escutar e estar ali, mas entender o que ela quer, o que ela quer dizer. (Sempre é um pouco complicado. Mas é preciso a atenção como a de um velho amigo).
Tem-se que exercitar os olhos, para que estes, afiados, estejam na mira dos desejos femininos, sejam eles quais forem. Aliás, quanto mais apurado for o olhar, mais surpresas ela terá. E o que há de melhor na vida do que uma boa surpresa? Bom, talvez duas, ou três. Flores, vinhos, guloseimas, poesias, jantares à luz de velas, abrir a porta do carro, pagar uma ou outra conta de bar, esperar ansiosamente ela chegar... Tudo isso conta ponto a favor e é de bom agrado. Nunca, nunca deixe essas coisas de lado. E lembre-se, o verdadeiro homem gentil o faz despretensiosamente.
Nunca seja indiferente e caso ela comece a chorar (e ela vai) tenha verdadeira sede de suas lágrimas e ofereça o peito com segurança para o seu consolo. Pode ter certeza, um dia você precisará de seu colo. Não a deixe saber, nem por um minuto, o que é solidão. Esse sentimento lúcido esfria o amor e faz com que a mulher se feche cada vez mais em seu mundo de aflições e, nos casos mais extremos, encerre sua participação no amor.
E, não se esqueça, 99,9% das mulheres são dignas das coisas mais lindas desse mundo e merecedoras de palavras leves e amáveis. No mais, tenha as mãos prontas para o carinho, os braços abertos para o amor e a boca sedenta para desejo.



Daniel Rubens Prado,

Primavera de 2006.

Imagem: Flor de Mujer,
Susana Lorraín.

Ela é linda, ela é atriz


Para Maria Flor.

Sábado à tarde. A cidade, Tiradentes. A menina passeia tranqüila. Blusa de alcinha e saia estampada. Uma flor. Cabelos curtos, negros, encaracolados. Pulseira vermelha em pele branca. O poeta não sabe, mas além de linda, ela é atriz.
Não chove. Caminha pelas ruas de Tiradentes. Não sei quem tem mais charme. A cidade ou a atriz? Definitivamente a pequena cidade mineira abraça a menina de movimentos leves e precisos. Ela, carioca. O poeta, mineiro.
Ela ultrapassa o poeta, que não tem pressa. À sua frente, ela dribla uma senhora e, ao passar por um carrinho de bebê, o olha com ternura e continua. Ela pára e se vira. O poeta olha nos olhos da atriz que parece uma flor. Enfeitiçado, ele não diz nada. O que ele poderia dizer que acolhesse toda a sua ternura e a fizesse sorrir largo e despretensiosamente?
Maria é estrela de cinema. Ilumina caminhos. Brilha. Maria tem um jeito frágil. É um anjo singular. Maria é calma e vem de onde a cidade beija o mar. Maria é Flor, longe de casa, distante do lar. Quem sabe procura um novo amor? Maria não sabe - além de ganhar um olhar, ganhou um poeta que gosta de viajar. Nos trilhos da Maria Fumaça. Na trilha de Maria Flor.


Daniel Rubens Prado,

Verão de 2007.
Imagem: Brightest Star,

Robins Street-Morris.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Cena de despedida


Acho que a última coisa que eu disse
foi um olhar.
E, assim como a vida, as lágrimas me traíram.
Não!
A última que disse foi dar as costas.
E na sombra projetada à minha frente
me lancei no vazio.

Texto: Fred Tonucci.

Imagem: Despedida,
Lucemar de Souza.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

De alegrias suínas, cervejas e amigos



Era dia de joelho de porco na casa do amigo. Sábado. Nem uma nuvem no céu. Sol de rachar até cuca de malandro. Saí de casa por volta de uma da tarde. Antes do meio-dia, não sairia nem pela filha da Maitê Proença. Bom, talvez por ela.
Segundo consta na memória e no paladar, nunca havia comido nada igual àqueles joelhos de porco, feitos por D. Célia, mãe devota de dois e esposa de primeira.
O mês, janeiro. Ao contrário daquele sábado, muita chuva e calor. Primeiro, aproveitando o tempo bom, passei no Bar do Caçapa e comprei uma cerveja que, graças ao todo poderoso freezer, parecia estar mofada. Comprei um maço dos vermelhos e me sentei na calçada, a fim de saborear com calma a primeira cerveja e o segundo cigarro do dia.
O amigo mora longe. Perto da lagoa da Pampulha. Pegaria dois ônibus e gastaria quase duas horas, não fosse o auto que me esperava em frente ao bar. As mesas cheias. O churrasco rolando em brasas. Um sorriso sabático começava a crescer em minha face, ainda sóbria. Uma turma de mulatas descia a ladeira em ritmo de samba. Lembrei-me de Cartola, Nelson e até do Chico. Um grupo de fiéis cachaceiros fechava o primeiro engradado. Não poderia ser outro dia. Sábado!
Cheguei à casa do amigo às três. Seus olhos já denunciavam a leve embriaguez. Senti inveja e logo perguntei se tinha uma branquinha. Ele riu e disse:
- Preciso responder?
Claro que não precisava. Nunca fui a casa dele sem que tivesse pelo menos meia garrafa da melhor. Sua família, no quintal, era só sorrisos. Aquilo que é felicidade. Família que bebe unida permanece unida.
Antes mesmo de entrar já podia sentir o cheiro do suíno. Uma cor de dar inveja a todas as outras partes do porco. Coloquei uma dose da seleta pra dois e o amigo cortou uma lasca da pururuca. Tinha sabor de sábado. Outros amigos chegaram. As mulheres pediam samba. O violão veio até o meu colo e entoei um samba de Vinícius. A caixinha de fósforo do amigo dava o ritmo.
O sol se pôs. A lua apareceu com timidez, junto às nuvens que surgiram no final da tarde. A cerveja gelada descia frenética. A última peça de joelho já estava no ponto. Mais uma dose, algumas outras cervejas e dois pedaços do joelho e a ressaca de domingo não seria mais em vão. Aliás, não foi.


Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.

Imagem: Edição do quadro Angels,
de Raphael Santi.
Autor desconhecido.

Menina com os pés no chão


Para Paula Godoy


O poeta diz olá
e voa da varanda.
Sua imagem corre pra lá,
não para a varanda,
mas para os olhos secos do poeta que decola,
na noite sonhadoramente sonora.

A menina diz oi com os pés no chão.
Não sabe para onde ele foi.
Trocam os pés pelas mãos,
a mente vence o coração.

É tudo nuvem, árvore, lembrança.
Nem a menina enxerga o poeta,
nem mais o poeta alcança.




Texto: Daniel Rubens Prado.
Imagem: Caniglia

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

De pastéis e sambas

Márcia trabalha em uma lanchonete no centro da cidade. Serve os pasteis mais deliciosos da região central. Além de boa na arte, é uma delicadeza em pessoa. Sempre quentinhos, feitos na hora, têm um sabor angelical. Pois sim, Márcia talvez seja um anjo do baixo Belô – assim chamamos o centro de nosso Belo Horizonte. Em meio ao caos do dia-a-dia de uma cidade grande, ela sorri e nos serve como poucas fariam.
Na semana passada, ao deliciar-me com uma de suas especialidades, o legítimo pastel napolitano, começamos a conversar um pouco sobre as coisas boas da vida.
- O que você faz quando não está trabalhando? – perguntou-me com certa curiosidade.
Disse que geralmente bebo cerveja com os amigos e que freqüento algumas rodas de samba, além de gostar de outros estilos e etílicos.
Por coincidência ou não, disse também gostar de samba e claro, de uma cervejinha gelada após o expediente. Até segunda ordem, somos todos filhos de Deus, não é?
Continuei indo à lanchonete, como costumo fazer diariamente. Há dias em que troco os pasteizinhos por um sanduíche natural, apenas para aliviar minha consciência cheia de gorduras e outros “males” boêmios. Mas, pelo menos três dias da semana (adoro números ímpares) peço a promoção dos pasteis e um cafezinho bem forte, para acompanhar o digestivo filtro vermelho.
Na última quarta-feira, fiquei sabendo, por intermédio de Márcia, que existe um “sambinha” no Mercado Distrital do Cruzeiro, bairro vizinho ao meu. Combinamos uma sexta-feira à noite, na esperança de sorrisos largos, samba no pé e claro, doses cavalares de alegria e descontração.
Saí do trabalho com muita sede. O verão vem nos castigando com chuvas torrenciais, mas nesta sexta em particular, o sol apareceu sozinho, sem suas nuvens carregadas de mau agouro. Não pensava em outra coisa, a não ser na Brahma gelada do bar à primeira vista.
Não poderia ser diferente. Liguei para o Poeta de São Miguel, parceiro e amigo querido, e fomos a um bar que serve comida árabe, chamado Bar do Toninho. Um boteco simples, mas que vende a cerveja mais gelada da região, além de tira-gostos de primeira. Ficamos ali. Conversávamos amenidades de todos os tipos até que chegou o assunto samba. Lembrei-me de Márcia e da sexta-feira no Mercado. Peguei meu telefone, disquei o seu número, mas ela me atendeu de um outro bar, sem pastéis ou samba no pé. Não deu em outra:
- Boa noite, Marcinha. Fica para a próxima.


Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.
“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é...”




Imagem: Samba. 1925.
Óleo sobre tela. 175 X 154
Emiliano Di Cavalcanti
Rio de Janeiro, Brasil

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007


Pequenos carinhos e uma sabiá


O casal chegava pontualmente às cinco e se sentava no mesmo banco da praça. Conversavam muito, sempre de mãos dadas. Depois, os dois jovens namorados começavam a trocar pequenos carinhos. Ela, saia rodada, blusa de alcinha. Ele, jeans preto surrado e blusa de malha. Volta e meia, uma sabiá pousava próximo a eles. Ela sorria timidamente e depois dava um beijo de cinema no jovem, como se agradecesse pela visita inusitada do pássaro.
Durante toda a primavera isso aconteceu com rigor inglês. A estação das flores passou. O verão nos trouxe chuvas homéricas, muito calor, mas pouco sol. Os dois enamorados sumiram da praça. Não mais os vejo da mesa do bar que costumo beber minha gim tônica diária. (prescrição médica)
De vez em quando, quem costuma passar por aqui é a sabiá. Ela pousa perto da minha mesa, me olha com curiosidade como se perguntasse: “Aonde foram parar nossos amigos?” e depois voa para o alto de uma árvore e faz um cocozinho, mirando o banco vazio, onde o casal costumava se sentar.



Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.



Imagem: Autor desconhecido.

sábado, 20 de janeiro de 2007

"Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é movido por sentimentos de amor. É impossível num autêntico revolucionário sem esta qualidade. Talvez seja um dos grandes dramas do dirigente; este deve unir a um espírito apaixonado uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem que nenhum músculo se contraia. Os nossos revolucionários de vanguarda têm de idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas, e torná-lo único, indivisível. Não podem mostrar a sua pequena dose de carinho cotidiano tal como faz o homem comum."



Texto: Ernesto Guevara de la Serna.
Imagem: Autor desconhecido.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

De noite, em Santa Teresa

Ela pede para ir ao Canto do Aristóteles. Ele escolhe a marca da cerveja.
Ela gosta de moela com pão. Ele admira a sua devoção.
Ele trabalha em janeiro, ela prefere a Bahia.
Eles andam pela Praça Duque de Caxias.
Um cachorro os acompanha, um gato preto espia.
O carro estraga. A rua escura e vazia.

Ela ganha uma prece. Ele pensa em amar. Cantam músicas tristes e esquecem. Ela não sabe o que quer, mas sabe namorar. Eles se beijam na frente do coreto. Eles se despedem. Táxi branco apressa o desejo.
- Calma, seu moço, só mais um beijo. Ela vai viajar.




 
Daniel Rubens Prado,
Verão de 2007.
La boheme!
Imagem: Arlington Theater at Night