sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Pétalas


“Ai quem me dera ouvir o nunca mais
Dizer que a vida vai ser sempre assim
E finda a espera ouvir na primavera
Alguém chamar por mim...”

Vinícius de Moraes.



Amanhece. E quanto encanto, meu Deus! Nesta ruazinha, onde morava minha amiga, existem árvores enormes, onde o sol pode brincar de escapar. E os meus pensamentos também escapam por entre o verde e a luz.

É de manhã. O resto das bebidas adormece sob uma camada fina de gelo, junto a pétalas de flores. Jogaram pétalas no isopor de cervejas, acredita? Várias cores. Mas não tão coloridas quanto aquela que veio vagando e, com um charme descabido, chegou com a voz mansa. Os lábios úmidos, o olhar perdido e um sorriso suspenso em um horizonte de delicadezas.

Há luz. Mas havia ainda mais. Ela estendeu a mão para a dança e o mundo ficou mais humano. O violão tocou. E todos passaram a falar mais baixo. Até o vento sossegou. Tudo em respeito àquela dança. Puro respeito àquela moça.

É dia, mas ainda posso ouvir vozes. Em meio aos primeiros sinais dos passarinhos, essas vozes, ora em português, ora em língua estrangeira, surgem e ficam como um eco, que vai se perdendo aos poucos, como um carinho vago. Provavelmente, são essas vozes que me acompanharão até os sonhos, induzindo visões irrecusáveis. Sonhos curtidos e cultivados sem a vã preocupação dos ponteiros. Sem a pressa inútil dos que não param nunca. Sem a promessa que alivia. Que outros, talvez, chamariam de tempo.

Todos partiram antes do amanhecer. Eu fiquei para relembrar a beleza de uma noite bem vivida. Enquanto a moça dorme envolta em seus próprios sonhos e outros desvarios, procuro e acho a imagem dela presente na imprevisível felicidade da nova manhã.

O vento alisa meu rosto enquanto o sorriso brota. Um sentimento de carinho preenche o dia. Eu fico inerte ao lembrar o beijo de adeus e a flor levada pela moça responsável por todos esses sorrisos. Causa primeira e única do meu súbito encanto e do meu dia.

Uma folha cai na minha frente. É mais um feixe de luz que escapa. Um pensamento que voa. Pétalas. Bom dia!


Fotografia: Ana Bizzotto.
Daniel Rubens Prado.
Inverno de 2007.
“Ai, quem me dera...”

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Moça de manhã


A manhã de sábado convidava à irresponsabilidade. Até o sol flanava céu afora. Bem devagar, como se esperasse a hora do almoço. Por isso, brilhava como uma gema de ovo, dourando o mundo.
O andar desajeitado do sol contaminava a moça, que chegou à varandinha que dava para o terreiro. Espichou-se como uma serpente preparando-se para dar o bote. Tombou o pescoço, fechou o olho direito, calculou a mira e o tiro saiu perfeito: acertou o sol. Lá dentro.
Recuou, maravilhada. Cega de tanta luz. O céu, encharcado de azul. O brilho do sol ofuscava algumas nuvens que, pouco antes, se orgulhavam da luminosidade da sua brancura.

- Coitadas - pensou a moça, aconchegada na lindeza de camisola. Tão curta que mais parecia um abajur. A cobrir luzes ou brilhos, sabe-se lá.

- Um dia bonito assim e eu sem nada que fazer – pensou, com a consciência do pleonasmo negativo.

Namoro terminado. Melhor amiga viajando. A mãe na igreja. O irmão na pelada de futebol. O pai no Mercado Municipal – cerveja, bife de fígado acebolado, os amigos.
Solidão.
Ela se bastava.
Só, somente, sozinha.
Esfregou os olhos. Olhou de novo para o sol.
Matutou.
Num gesto brusco, saiu do alpendre.
Voltou logo. Uma tesourinha e um alicate nas mãos. Às unhas!
Sentou-se a uma cadeira, virada para o sol e para as réstias de raios que começavam a desenhar camadas de ouro no chão do alpendre.
A moça ergueu a perna direita. Uma perna em toda a glória de efêmeras penugens e tímidos músculos. Com uma marca de queda no joelho. Lembrança de uma tarde na Serra do Cipó.
Um suspiro espesso, dedicou-se a navegar a bordo e estibordo das unhas do pé direito.
Depois de cinco minutos de bifinhos e ais, trocou de perna.

De sob a cadeira, veio a perna esquerda. Com os mesmos músculos tímidos e as penugens efêmeras. Faltava apenas o sinal do tombo. Nada é perfeito.
O sol passeando lá fora. A moça, do lado de dentro, continuou a perfunctória missão de remexer nas unhas.
Enfim, descansou tesourinha e alicate na mesa comprida. Espanou os estilhaços das unhas com tapinhas de alta delicadeza. Especialmente os que ficaram na barra da camisola.

Levantou-se.
Espreguiçou de novo.
O nada que fazer chegou ao auge.
Pôs a mão no queixo. Mas não refletiu sequer um segundo.
Pelo jeito que saiu do alpendre, tomara uma decisão. Definitiva e inarredável.
Era verdade.
Tomou sim.
Voltou lá de dentro com um violão na mão.
Sentou-se. Botou o pé direito num pufe distraído, que tingia de verde
a frente da cadeira.
Ajeitou um lá maior.
E começou a cantar a música que aprendeu, toda vez que seu pai brigava com a mãe:
- Teu mal / é comentar o passado. / Ninguém precisa saber...
Desafinada de fazer dó. Ou lá maior?


Para Renata H.


Crônica: Melchiades Cherubino

Imagem: Louisiana, por Lora Shelley.
Para mais obras da artista, clique aqui.

sábado, 18 de agosto de 2007

HAI
cai o dia
dentro de um copo
o sol vira boemia
Até onde eu sei - Imagem: Luís Neves Ferreira.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007



“Depois daquele baile...
A magia do nosso samba
tomou conta de mim e me fez sorrir,
com aquele olhar distraído
de quem viveu um momento muito feliz”.

Depois daquele baile...


Permaneceram sorrisos leves e outros olhares,
Distraídos.
Riso fácil na tarde de domingo.
Lembrança boa na memória.
Eu, disperso.

E frio. Muito frio.

A imagem daquele baile é a fotografia nítida...
Dos sorrisos, passos, olhares e beijos.
Beijos de despedida.

Para um caminho de adeuses, que sejam sempre assim.
Longe da melancolia das coisas fugidias,
E próximos ao encanto das coisas boas.
Das boas companhias.

Depois daquele baile...
Pertencemos a um só tempo.
Um tempo, talvez, de suavidades e delicadezas.
Tempo onde o carinho baila
E corações despojados dançam.

Dançam não só porque é o que lhes resta,
Mas pela esperança de outros sambas alegrias.

Depois daquele baile,
Saudades.




Daniel Rubens Prado.
Inverno de 2007.
Alguns graus. Talvez o dia mais frio do ano.
Uma segunda-feira.

Imagem: Autor desconhecido.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Imagem: Metalloid for Lunch , Hotel Statler, DC, 1943



Depois da estréia da nossa correspondente no Rio de Janeiro, Marcella Jacques, trazendo o lirismo da cidade purgatório da beleza e do caos para o Eutanásia, agora é a vez do nosso mestre cuca de plantão dar as caras, com a coluna Você Tem Fome de Quê? Senhoras e senhores, Leonardo Deoti.


Você tem fome de quê?



Comida é pasta, bebida é vinho


Todos sabem o quanto é bom uma boa dose de praticidade quando se está cansado. Principalmente, depois de passar o dia inteiro resolvendo pepinos e ouvindo abobrinhas. É provável que os próximos dias não sejam muito diferentes. Fazer o quê? Tudo o que se deseja é chegar em casa, tomar aquele banho, alimentar-se com o que houver e dormir. Não é verdade? Pode até ser, mas eu tenho a petulância de dizer que o seu dia, aliás, a sua noite, está apenas começando. Principalmente se você tiver uma companhia, no mínimo, agradável. Namorada, esposa, filhos, amante ou até mesmo um amigo, bom de fala e de ouvido, esperando a simplicidade, a leveza do crepúsculo e o frescor da noite. E digo mais, não é necessário muito trabalho para proporcionar uma situação de sabor e prazer e, principalmente, relaxamento.

Temos que fugir das complicações, suprir as necessidades, aproveitando o tempo que sobra para desfrutar a pessoa ao lado. Por isso, após aquele almejado banho gelado (ou bem quente, para os menos animados) e uma roupa confortável, escolha um prato, dentre os que se encaixam perfeitamente nesse tipo de situação. Garanto que, após uma refeição maravilhosa e acompanhada de uma trilha sonora escolhida a dedo, é só correr para o abraço! Ou para o beijo, se a escolha for uma bella ragazza. Depois disso, seu estresse já terá desaparecido e suas energias renovadas.

*** Demonstração prática ***

Leo Deoti.
Imagem: Autor desconhecido.

Demonstração prática


Ao vasculhar a dispensa, encontrei um pacote de penne. 250 gramas. Pronto, decidido! Massa é uma refeição simples e rápida; e pode ser nutritiva e completa, dependendo dos ingredientes adicionados. Em torno de cinco minutos, a massa fica “al dente”. Esse é o ponto ideal do cozimento para entendidos. Porém, no Brasil, algumas pessoas preferem uma massa mais macia.
Se o cozimento não for interrompido por água gelada, o próprio calor fará a massa chegar ao ponto ideal. Agora, se você escolher levá-la ao forno depois de misturada aos outros ingredientes, é melhor parar o cozimento, antes que chegue al dente. O calor do forno se encarregará de terminar o serviço. Ressalto que não é necessário colocar azeite, muito menos óleo na água na qual se cozinhará a massa. Coloque um pouco quando a água já estiver em ebulição. E, como não podia faltar em uma receita, sal a gosto.
Para decidir quais ingredientes vão com a massa, recorra à sua geladeira e/ou dispensa e pegue o que houver em sua frente. Inventar não é pecado. Eu, por exemplo, encontrei um resto de cogumelos Porto Belo, tomates cereja, aspargos e presunto de Parma. Cortei os tomates pela metade, os cogumelos em tiras, os aspargos em diagonal e desfiei o presunto. Coloquei os aspargos para cozinhar na água em ebulição por dois minutos. Depois, joguei água fria para proporcionar um choque térmico. Usei a mesma Sautese para todos os ingredientes. (Sautese é aquela frigideira com a borda inclinada, usada para saltear ingredientes. Ou seja, misturá-los jogando-os para cima). Salteei os tomates por um minuto, depois os aspargos e, por último, os cogumelos. Todos com um fio de azeite, sal e pimenta-do-reino. Misturei tudo com a massa, ralei um pouco de parmesão na hora e, pronto! Não levei mais de 20 minutos para fazer. Por sinal, achei deliciosa e ainda agradou a bella ragazza que me acompanhava.
Claro, não se esqueça de um bom vinho! Por ser uma massa sem molho, para uma harmonização, é imprescindível um vinho firme, fresco e balanceado. Se for um branco, opte por um pouco mais encorpado. Caso seja tinto, peça um que seja mais leve e frutado. Tão leve quanto sua companhia. E claro, dê preferência aos vinhos italianos, pois o prato é carcamano. Lembre-se, uma regra básica é sempre procurar harmonizar pratos com vinhos da mesma região.

Leo Deoti.