sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Desconhecido


Você não me conhece nos seus lábios de alumínio
Não me vê debruçado sobre os volantes rasgando a noite
- destroçando estações, todos os leões de mármore da noite
Não me conhece, enquanto escuto os assassinos urrando
Dissolvendo em ásperos amanheceres minhas saudades
Você nunca me viu em chuveiros enquanto soluço o álcool das suas veias
sobre o teu torso de apolo eu te apunhalo com as pombas e cílios
- depois de cada gozo você não me conhece nos viadutos
nunca mesmo nem me imaginou nas nuvens caldalosas dos meus oceanos
é como se sozinho fosse como brisa morta, soprando
soprando aquelas algas mortas que pisei e onde você estava?
Na sala de cinema suas mãos não passam de súbitas lâminas
enquanto eu via o mar eu via as ondas eu via as conchas
meus sonhos de calcário se tornando sólidos na solidão dos seus pés
ligações muito mortas, você não me viu dormindo abraçado com o ar
Você não sabe como são meus olhos pousados sobre o mar
só os conhece perdidos no suor surdo da sua pele
Não conhece o peso do meu coração, o engrossar imenso do meu sangue
- o que eu sei é das suas luzes arqueadas no santa tereza
- o que eu vi foi sua boca se partindo em duas praças à meia-noite
- engolindo a espinha dorsal da serra sem fim, nossa curva sem fim
Poesia: João Tonucci.
Imagem: M.C. Escher,
Print Gallery, lithograph - 1956.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Metamorfose em noiva


Depois da maternidade – clímax da experiência unicamente feminina na Terra –, talvez o período mais curioso da vida de uma mulher sejam as vésperas de um casamento, momento do nascimento de uma "noiva". Portas de um mundo desconhecido se abrem e a mulher desprevenida, distraída ou suficientemente rica pode se inebriar. Há um grande mercado que sobrevive fartamente à custa dos casamentos: igrejas, buffets, recepções, floriculturas. Mas isso é sabido e apetece a ambos os noivos. Algo mais extraordinário e fútil, excetuando-se todo o romantismo, é o mercado da noiva.

As vendedoras de uma loja entram em frenesi quando a cliente confessa estar procurando um vestido para o seu casamento. Os olhares arrogantes para moça que adentra de jeans e tênis se transformam em pares de corações (ou de cifras?). A vendedora chama a gerente: "Ela quer um vestido de noiva!", e a excitação é geral. A moça tenta manter o foco, prometendo-se não gastar mais do que havia planejado, mas já encantada com modelos que custam o triplo. A gerente promete todas as facilidades no pagamento, e um clima de permissividade econômica invade cada etapa da construção de uma noiva. "Afinal, é o seu casamento!", exclamam em uníssono as vozes femininas, das vendedoras à mãe, que, apesar do seu passado hippie, sob a bolsa peruana e as sandálias de couro, sempre nutriu em silêncio o sonho de se vestir como princesa. O sonho é transferido à filha, linda, dentro do provador e de um vestido cujo preço é um salário.
A moça começa a absorver as expectativas. Folheia uma revista especializada em noivas e se pergunta, com sua mente crítica forjada no ambiente universitário, "como é possível preencher 70 páginas mensais com vestidos brancos?". Mas a hesitação dura pouco, pois a curiosidade recém-despertada a leva comprar o produto que antes receberia o carimbo de sua autocensura.
Ela começa a enxergar sutilezas que antes nunca lhe ocorreriam. Um esmalte perolado de repente parece muito diferente de um tom mais metálico. Num dia, a jovem se pega toda enfática, discutindo seriamente sobre arranjos de cabelo e depilação pré-nupcial com a amiga da faculdade, que também vai se casar, e com quem antes só discutia sobre a infinitude do universo, a literatura feminina e as bandas indie. O dia da noiva está marcado num salão chique da cidade. O pacote inclui banhos de sais, de lua, de creme, adestramento dos pêlos, unhas, penteado, maquiagem e uma assistente só para catar os grampos que caírem no chão. Ela está dando aulas particulares de inglês para bancar tanta despesa e percebe o exagero, mas releva.

Nada pode ser mais feminino, dentre as futilidades da vida, que uma mulher se transformando em noiva, ainda que nesse estado ela dure apenas uma noite. Como tudo passa, a carruagem retornará à condição de abóbora; a princesa, à de mulher contemporânea. A mãe reassumirá as preocupações com o meio ambiente e a emancipação feminina, o mercado da noiva subitamente sumirá de vista, bem como as revistas. Nenhum homem jamais entenderá essa experiência, que apenas indivíduos com dois cromossomos X podem ter. Não que os homens não tenham seus momentos de excessos, particulares do seu gênero: o fanatismo por esportes não deve nada em exagero à produção da noiva. Na contagem dos pontos, o que fica é algo a mais depositado no saco das experiências de vida. Quer a julguemos importante, apenas divertida ou simplesmente absurda, a "metamorfose em noiva" será catalogada, juntamente com o salto do bungee jump e a viagem de mochilão, como uma experiência radical: radicalmente feminina.
Texto: Luisa Godoy.
Imagem: Eduardo Araújo