sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008


sopro divino

carinho de asas

o vento balança o ipê




Imagem: Lilia

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Asamao: para alçar vôos


Era tão descabida em si que toda vez que ficava sozinha olhava para suas mãos. Não as reconhecia como suas, desentendia aqueles dedos e, sobretudo, a palma branca, cheia de linhas confusas e misturadas; feito novelo de lã da cesta de vime da casa da avó que já não há. Entrava no banheiro de casa, logo depois do almoço, logo depois dos encontros festivos da grande família (que também já não há), e sentava-se no chão – que a mãe sempre advertira ser chão sujo, esses de banheiros, só para ter a sensação do estranhamento. O estranhamento das suas mãos. E ficava por horas assim: nesse fixo exercício de se perceber.

“Não é minha essa mão, não é essa minha mão!”

Abrir e fechar; mexer os dedos lentamente: palma, dorso, palma, dorso, palma, dorso. Bater palmas é voar? Não, definitivamente. Reconhecer a mão, tocar os pés n’alguma coisa que não seja o chão talvez seja a chave pr’algum entendimento. E sempre que o desconforto no quadrado do chão sujo (?) do banheiro calhava de vir, por encanto, a necessidade de ares de terra surgia, imediata. Corria, a menina, para o topo da mangueira. Mangueiras costumam ser generosas: galhos em forma de bancos, de braços que recebem pássaros, gentes, calangos e tudo mais que respira e tem desejo de abraço.

De lá do alto, olhava os pés. Porque os pés não causam espanto? Estranhos em forma - são reconhecidamente seus. Embala os pés ao sabor do vento imaginário e sente-se dona dos pares: embora aprecie mais o esquerdo, mais torto e dotado de feridas e arranhões: sempre gostou de cicatrizes e nunca usou trabalhar tatuagens previamente estilizadas. Prefere o arrombo de um tombo, a marca de um desvario e de um descuido. As tatuagens do acaso, talvez.

E as mãos, ali. Ainda a causar estranheza sublime. Agarra o galho próximo e isso não é uma desverdade. A mão, em utilidade, é real. Mas pairando no ar, dorso, palma, dorso, palma, dorso, palma, dorso, palma, é um mistério obtuso e indecifrável, ao menos a ela, sempre, que se dava ao exercício da contemplação.Cresceu, a menina. Tomou ares de mulher. E ainda sozinha, agora, não mais somente no banheiro da casa, ainda cisma de verter o olhar para as mãos. E busca, incessante, o sentimento de tempos remotos: a estranheza de não se saber, aquela estranheza pura e adocicada e febril que tanto comovia a criança de antes, aquela estranheza incômoda e arredia. Mal sabia, a menina, que ali estavam, nos mistérios das mãos, a chave para toda a percepção do que hoje é o maior mistério: o de desvendar seus desusos, habilidades e fazê-las, das mãos, o par de asas indispensáveis para os vôos intangíveis d’agora.



Texto: Val Prochnow.
Imagem: Woman's hands holding a cigarette, do site http://www.allposters.com/

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Entre beijos e cigarros


Pelo beijo de antes, pelo cigarro de depois

Seu corpo repousa. No interior, pela janela, uma luz de prata cobre seu rosto. Não passa muito disso: Eu observo, você dorme.

O feixe que a ilumina entra embaçando o que há de tristeza. Ficam apenas saudades e melancolias. Chamemos do que quisermos. Afinal, somos o que fazemos. E assim seremos. Leves como um pensamento bom no final do dia.

Passa ano. Passarinho. Pouso no seu canto. O fim abre espaço para o nascimento. Aborto a dor, a solidão e recrio um mundo preparado para o amor.
Somos assim. Viveremos felizes e iludidos. Tropeçaremos, apenas, em certas lamúrias, que não encontram o tom. E, sobretudo, sonharemos. Afinal, quem sonha desperta.

Pelo cigarro de antes, pelo beijo de depois

Nada virá sem carinho, como as águas mansas do ribeirinho.

Garotos puxam fumo, meninas chupam mangas.

E pelas encostas de nossas Minas, com a poeira enganosa que faz barro da gota de lágrima da moça triste e salga as estradas vermelhas do interior, deito a cabeça sobre o colo macio da mulher amada.

Confusa loba do mar; menina do rio que tem medo de se afogar. Assim como deus e dois são cinco, somos dois astronautas sem ar.

- Carpem, carpem, carpem! – diria, em latim, o poeta social morto.

E é melhor morrer de leveza e encanto, vodka e vinho, ternura e amor, no abrigo de fontes da pátria – gentil e suave, com os braços abertos para uma liberdade, ainda que tardia, na sexagésima nona útil tentativa de sorrir sem culpa. Sem a mácula de dominar o jorro corrosivo do gozo. Sem a vergonha de vê-la entregue a este mundo amado, naturalmente gozoso.

Texto: Daniel Rubens Prado

Imagem: Autores desconhecidos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

MAMA ÁFRICA


A nossa eutanástica Ana Flávia Rodrigues viajou pelas paragens da Austrália e acabou indo parar na África do Sul. Ela preferiu ser nossa correspondente no continente africano, do que relatar a riqueza e a beleza óbvia da Oceania.



Hoje, aqui na África, precisamente em Joanesburgo, vi e vivi a mais completa contradição em relação à Austrália. As pessoas, as ruas, as casas – mulheres com seus filhos carregados por panos amarrados nas costas; os dialetos, o jeito de nos olhar bem no fundo dos olhos – meio branco-avermelhados, destacados no meio da pele negra, negríssima, ofuscada quando eles sorriem. E isso é fácil de acontecer. Com todas as dores do mundo em um mesmo lugar, eles sorriem muito. É puro fascínio. Lembra-me um povo que está do outro lado do oceano.

O principal dialeto, o zulu, é o mais falado. Logo aprendi algumas palavras básicas para tentar ser o mais gentil possível com as pessoas daqui. Entro nos lugares e digo “sawubona” e, com sorrisos largos, eles me respondem “kunjani”. Retruco mais uma vez dizendo: “ngyaphila” e todos passam do sorriso para o riso, espantados porque uma turista está falando zulu. Não é nada demais; apenas uma seqüência comum de “Olá, como vai você?”, “estou bem”. Finalizado com o obrigado – “ngyabonga”. Fiquei pensando sobre o espanto deles e percebi, depois que perguntei ao meu guia do dia, que raríssimas pessoas se interessam pela língua deles.

Em Soweto, onde viveu Nelson Mandela antes de ser preso e apenas dez dias quando foi solto, 27 anos depois, comecei a andar pela classe pobre, semelhantes às nossas favelas, com aquelas casas improvisadas com tudo que pode ser reutilizado. Porém, são menos “sofisticadas”, pois não vi nenhum “gato” no telhado. Eles não têm eletricidade. Luz só se tem com velas. Rádios e televisões com baterias de carro. Água é artigo de luxo – eles costumam buscar em algum poço nas redondezas. Conheci uma casa onde tinha couve plantada no quintal. Que maravilha! A dignidade impera diante a pobreza. Lembrei-me de uma certa gente humilde do outro lado do oceano. Que vontade de chorar...

Passei pela classe média e depois pelas casas dos ricos. O meu guia, o Moses, mostrava entusiasmado as casas grandes, que para mim não tinham nada de extraordinário. Ele falava: “Esse povo tem muito dinheiro”. Imaginei o que seria ter pouco ou quase nada aqui. Então, fui à casa do Nelson Mandela.

Almoçamos e, para minha felicidade, comi frango ensopado, arroz à grega, carne de panela e feijão! Ah, feijão depois de mais de 35 dias. As cozinheiras... daquele tipo Maria, sabe? Com bundas enormes, panos amarrados na cabeça e um jeitão matriarcal. Certas pessoas, que vivem do outro lado do Atlântico, não fazem a mínima idéia do quanto somos profundamente africanos.
Estive no museu do Apartheid. Sim, chorei. Fiquei indignada com a ignorância dos homens e emocionada com outros que fizeram e fazem valer a pena toda a luta pela liberdade e pela dignidade. Lá, vi uma frase que me lembrou o povo brasileiro: “O homem não pode se livrar dos problemas, mas pode, de vez em quando, deixa-los “flutuando”. Assim como nós fazemos na ofegante epidemia que se chama carnaval.

Mama África é demais.
Um bom feriado para todos.

Ana Flavia Rodrigues – Joanesburgo.
Verão de 2008.
Esta propaganda circulou por aí, mas muita gente ainda não viu. Vale muito a pena. É fantástica!
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