sexta-feira, 27 de março de 2009

Poesia no centrão

Trabalho no centro da cidade.
No centrão.
Fauna e flora riquíssimas.
Todo o povão. Sempre no seu melhor momento.
Ontem mesmo, por exemplo.
Saí pra lanchar.
Lanchonete cheia.
Só três mesinhas de dois lugares.
Cheias também.
Numa delas, uma moça. Só.
Bonita dum jeito, digamos, constitucional.
Cabelo num rabo-de-cavalo convenientemente oscilante.
Dois brincos dourados. Grandes. Exageradamente femininos.
Uma blusa branca. Leve. Fingindo transparências. Escondendo.
Ou melhor, revelando dois seios decentemente trêmulos.
A saia e os sapatos, não vi. Completando a vista parcial aérea, um
copo de vidro sobre a mesinha. Com um dedo de um líquido amarelo.
Com a minha imensa capacidade dedutiva, aperfeiçoada com a
Agatha Christie, cheguei à conclusão que a garota tinha tomado um
suco, refrigerante ou beberagem ligados à família da laranja.
A moça contemplava, cítrica, um canudinho vermelho.
Com o qual - outra detetivesca e sábia dedução - sorvera a bebida,
cujo restinho estava no fundo do copo.
Mas a menina tinha um jeito triste.
Muito triste.
Fiquei comovido assim, de graça.
Cavalheiro e charmoso, cheguei junto. Num gesto ousado, sentei-me.
Fui à luta:
- Fiquei te olhando ali do balcão. Achei bonito esse jeito seu de ficar
admirando o canudinho. Mas também achei um tanto triste. Pelo que
estou vendo, você vai chorar, não vai?
A moça esticou o canudinho, encarou-me firme e deu os trâmites por
findos:
- Sabe, moço, estava eu aqui na minha. Conversando com o
canudinho e vem o senhor cortar meu papo? Quer saber de uma
coisa?
Não tive tempo de responder.
Me entregou o canudinho num gesto irado e encerrou o momento de
poesia:
- Enfia esse canudinho no seu cu, intrometido.
Saiu da lanchonete rebolando constitucionalmente, sumindo na tarde
de quarta-feira.
E eu ali, no meio da lanchonete, com o canudinho na mão.
Obedeço a moça?
Imagem: Marcos Antônio.

terça-feira, 24 de março de 2009

GOD IS CREEP

Quem me apresentou o disco “Ok Computer”, do Radiohead, foi um ex-namorado, há nove anos. Amor a primeira ouvida. Desde então, esperava ansiosamente um show da banda pelas bandas de cá. Depois de muitos boatos e anos de espera, enfim, fomos atendidos.

Foi o melhor show da minha vida, embora não me sinta capaz de traduzir a experiência. Tentarei fazê-lo, entretanto, por insistência do amigo-poeta e editor deste blogue.

Li vários artigos a respeito das apresentações no Rio e em São Paulo. As críticas exaltavam os mesmos pontos - a qualidade técnica dos músicos, multi-instrumentistas, e o extraordinário efeito visual do palco, com tantos tubos de luzes em cores vibrantes. Mas, o que realmente impressionou os jornalistas foi o público. Sim senhores, apesar das indiscutíveis qualidades do Radiohead, nós ajudamos a fazer estes shows serem inesquecíveis.


Cantamos em peso com Thom Yorke e era nítida a alegria dos músicos no palco. “No Surprises”, “Karma Police” (o coro junto com Thom no refrão “this is what you get!”), “Paranoid Android” (todas estas do Ok Computer), além de “Idioteque” (Kid A), “Reckoner” (In Rainbows), “You and Whose Army?” (do disco Amnesiac, executada numa performance emocionante com uma pequena câmera em cima do piano que mostrava no telão em P&B apenas os olhos do cantor), e o grand finale “Creep”, foram músicas áureas do show, onde os espectadores emprestaram suas vozes e o resultado foi de chorar! E eu chorei.


Já fui a diversos shows importantes e admiráveis – Iggy Pop, Patty Smith, Sonic Youth, Stones, Beastie Boys, Yann Tiersen, entre os internacionais. Além de Chico Buarque, Toquinho, Caetano, Paulinho da Viola, mas nenhum deles me fez chorar. E também gargalhar e cantar, dançar, tocar guitarra invisível, agradecer a deus, clamar o diabo. Tudo isso misturado, em pouco mais de duas horas. Não tinha vivido nada parecido.

Ao final e depois de todas essas sensações arrebatadoras, queria fazer jus ao meu apelido, Pennylane. Eu merecia ser groupeira naquela noite! Liguei para uma amiga que trabalhava na produção do evento e pedi que me ajudasse a entrar no camarim. Encontramos-nos, mas ela não pôde me levar, o acesso era muito restrito e as pessoas não nos deixam esquecer que eles são super pop stars. Um rapaz chegou perto de nós e implorou para minha amiga - que tinha uma credencial pendurada no pescoço – para colocá-lo em contato com a banda. Mas ela explicou: “Eu não posso. Veja só a minha amiga. É a maior fã e eu não consigo nem pra ela”. O menino, que estava com um pôster enrolado nas mãos, provavelmente para ser autografado, fez cara de apelo e ressaltou: “Pelo-amor-de-deus, eu vim lá do Amapá!”

Eu quase abracei o tal desconhecido, como fazem os torcedores de futebol ao presenciarem o gol do time do coração. É incrível compartilhar com milhares de pessoas a mesma emoção. Mais incrível ainda, é fazer milhares de pessoas se emocionarem.

Eu não queria autógrafo, nem fotos com o Radiohead. Eu queria mesmo era dizer “you`re so fucking special”.

Texto: Marcella Jacques
Março de 2009.
Imagem 1: Autor desconhecido.
Imagem 2: Estadão.
Imagem 3: Autor desconhecido.

sexta-feira, 20 de março de 2009

OBRA


tenho a noite para construir
com minhas ferramentas vis:
cigarro, álcool, e minha roupa caída

o som, da obra, me tira o tino
e me faz não querer o sol
logo após a escada urbana

sou mais um no sfumato cinzento
e quero mais que o prazer viril
quero ter punhos, tijolo, cimento

e cumprir a meta soturna:
outro amor, outra mentira e a certeza
de uma noite com começo e um quase-fim

segunda-feira, 16 de março de 2009

De olho o gato diz


De súbito o gato passou
E miou um miado mudo com o olhar
Um olhar minguado e mais um miado cru
O olho de quem com o miado diz

Diz e desdiz contradiz
Diz de olho e com desdém
Diz algo de triste
Diz algo de alguém
Texto e imagem: Pablo Casarino.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Para quem gosta do silêncio


Minha boca sussurrou
meu amor ao seu ouvido.
Como resposta ouviu-se apenas
o silêncio.
E agora essa ausência permanece
congelada.

Enquanto isso você derrete suas lágrimas
por quem atirou o seu amor ao mar.




Imagem: Autor desconhecido.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Mesmo sabendo que todos os dias são da mulher e que ainda há muito mais para ser conquistado, o Projeto Eutanásia publica um soneto de Bruno Grossi às mulheres.

Vale a pena ler o texto "Dispenso esta Rosa!", que a Rebecca publicou em seu blogue "Umas e Outras", de Marjorie Rodrigues. Clique aqui.

quinta-feira, 5 de março de 2009



A agenda de compromissos deitada. É ela a companhia da mulher solitária. Da mulher solitária que passa. Que passa rápida pelo tempo e mal dá conta. Suspira e vem a falta. Da palavra, da poesia que já houve, do ouvido, órgão cansado de tantos falsos lirismos. É carnaval e a mulher sabe que vai morrer. E ainda assim mantém a agenda de compromissos com marcações multicoloridas até o final do ano. Até o próximo Carnaval. Confete de compromissos que ela sabe que não vai cumprir. Mas a dor de não tê-los organizados na agenda de compromissos é maior. E toda noite é assim. A agenda de compromissos deitada ao lado da mulher solitária. No carnaval, uma marchinha ao fundo. De resto, o mesmo de sempre, a mesma mulher, a mesma agenda e os mesmos compromissos, ainda que só rabiscados no corpo da agenda de compromissos silenciosa da mulher solitária que sabe que vai morrer.
Texto: Val Prochnow.
Imagem: Edward Hopper.