quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Família brasileira

Era mais uma daquelas noites quentes nessa cidade perdida no meio do centro oeste. Eu vinha de algum canto escuro e enfumaçado da cidade e rumava para casa, ébrio como sempre. Áureos tempos em que não era necessário se preocupar em dirigir nesse estado.
Nessas noites que quase emendavam com o dia e nada de mais interessante havia acontecido nas árduas buscas por qualquer resquício de emoção diferente, eu costumava voltar por um caminho onde as prostitutas ficavam a espera de clientes. Sabia que sempre sobravam umas poucas drogadas procurando carona para qualquer lugar em troca de uma trepada. Ainda não existiam os desgraçados e baratos moto-táxis, que estragaram esse glorioso e degradante bálsamo que me acalmava e me permitia dormir.
Óbvio que a esta hora e nesta situação, somente sobravam as mulheres mais deterioradas e desesperadas. Mas nunca fui de escolher muito. Nem sempre era assim, algumas vezes uma agradável surpresa saia do fundo daquelas empesteadas vielas escuras.
Passei devagar pelas ruas, com o fim da noite, elas iam sendo sugadas pelas sombras e se misturavam cada vez mais à paisagem de concreto e ferro que as cercavam. Se não prestasse muita atenção não conseguia vê-las. Em uma esquina vi um vulto que me chamou a atenção. Era uma garota muito bonita e bem vestida. Fiz minha proposta descaradamente, sabia que tanto elas quanto eu odiávamos rodeios hipócritas e que só nos fazem perder tempo. Entrou no carro e conversamos algumas trivialidades. Fiquei sabendo que havia trabalhado a noite inteira e, como praticamente todas as meninas daquela região, era viciada em zuca, uma droga muito forte que vem do resto da cocaína após a purificação, algo similar ao crack. Convidei-a para ir a minha casa ou teríamos que trepar no carro mesmo, pois não possuía dinheiro para ir ao motel, nem mesmo aos mais vagabundos que ali abundavam. Como ela não tinha pressa para voltar para, seja lá qual for sua origem, fomos. Trepamos, tomamos algumas cervejas, conversamos, trepamos, conversamos e ela acabou dormindo por ali mesmo. De manhã acordei-a para levá-la embora. Precisava trabalhar e de jeito nenhum a deixaria sozinha por ali. Um filho da puta reconhece outro e, mais de uma vez, as pessoas que considerei mais inocentes, me ferraram com gosto. Disse que não precisava levá-la, que pegaria um ônibus por ali mesmo. Não insisti.
Naquele mesmo dia, enquanto almoçava no meu restaurante de costume, assistia ao noticiário sem prestar muita atenção. Uma mulher aos prantos contava a história de sua filha desaparecida há alguns meses e implorava por notícias, já que a polícia não estava dando a mínima. Vi que carregava uma foto que navegava fora das bordas do aparelho, pois mexia muito com as mãos enquanto falava. Quando aproximaram a foto da garota pude reconhecê-la apesar de estar um pouco mais nova e sem o sorriso sacana que não saiu do seu rosto o tempo inteiro em que esteve comigo. O número para contato apareceu abaixo da foto. Olhei para o telefone do balcão em um rompante de compaixão, mas logo desisti da idéia. Voltei ao meu filé com fritas pensando: "que merda que está virando a família brasileira".



Texto: Igor Kolling Maciel.
Imagem: Reflexion.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A primaVera

Vem de tempos em tempos
como se tirasse férias
por onde passa deixa tudo mais belo

ah, prima Vera, usa uma calça
que arreganha o botão
e que faz a alegria da galera!






Poesia: Leo Faria.
Imagem:
José de Almeida e Maria Flores.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Quase Primavera





E você me traz
Ipês amarelos
Céu azul
Imensidão
Brisa fresca
Quase flores
Ainda secas

Sejamos generosos
Chega logo primavera









Poesia: Patrícia Tavares.
Imagem: Mariah.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O Escuro



Na poesia há tristeza
Ela amarga
Ela fere

Uma febre
Vertiginosa
O consome

Teu corpo sai
Das entranhas das palavras
Uma poesia feita de dor

Imóvel, estática
Como o labirinto
Dos incompreendidos

Sem dizer o seu nome
Sem fugir dos seus pensamentos
O abismo o aguarda
Desumanizando a solidão

O escuro o trai
Como uma pedra
No deserto melancólico
De seus versos


Poesia e imagem: Bruno Grossi.

sábado, 10 de setembro de 2011

Ramadã

O sol fustiga as ruas estreitas, quando tomo o ônibus. Pela janela de trás, vejo a cúpula dourada da mesquita flutuando sobre Haram Esh-Sharif. Recordo a ascensão do profeta e me despeço.

Dentro, pouca gente. Na maioria, árabes fodidos, que vivem do lado oriental. Como eu. Escolho o assento junto ao velho, para não chamar atenção.

No distrito judeu nos param. Quando o soldado entra, sinto meu coração disparar sob a túnica, e acho que vou explodir ali mesmo. Baixo os olhos, em prece, e vejo as botas se aproximando.

A ponta do fuzil toca minha cabeça. Documentos, ordena. No bolso, meus dedos roçam o detonador. Ainda não. Controlando os movimentos, estendo o passe. Tire os óculos. E com a coronha levanta meu queixo.

Sustento o olhar, sorrindo de leve. Meus olhos traçam uma linha entre seu rosto e o chão. Arqueio ligeiramente o corpo e uno as mãos. Humildade. Gostam disso. Ele joga os papéis no meu colo e aborda outro árabe.

No ponto, diante da sinagoga, um judeu gordo sobe. Confere o troco da passagem, duas vezes, e enxuga o rosto. Senta de frente para mim, escondendo seu desprezo atrás do jornal: ATAQUE AÉREO MATA 15 CIVIS EM HEBRON; onde nasci. Sente-se melhor agora? Mesmo com tanto explosivo a um metro do seu rabo?

O ônibus segue pelo bairro cristão. No mercado, muita gente entra. Quase seis horas. Sinto um arrepio quando a puta encosta em mim. Profanação. Volúpia. As tatuagens, em breve, serão chagas de purificação.

Deixamos a cidade antiga pelo portão de Jaffa. Agora o ônibus corre pela avenida, em direção à estação central. Livre dos muros, a víbora arremete sobre a presa.

Levanto, cedendo lugar para a mulher com a criança. Um sorriso, e a mãozinha estende a maçã. Agradeço, em hebraico, e digo a ele para jejuar. É o Ramadã. A mãe olha com espanto e muda o garoto de lado. Meu pequeno Mohammad teria essa idade.

O motorista diminui a velocidade. Advirto a mulher de que é a última parada antes da estação. E com os olhos, suplico que desçam. Ela me ignora.

A cidade exala o calor do dia. No oriente, a adaga do crescente surge, acendendo as primeiras luzes. No reflexo da janela, vejo meu filho. Sorrindo. Para mim.



Texto: Maurício Meirelles.
Imagem: Argus Caruso.
Tratamento: Patrícia Tavares.